Diário

domingo, setembro 28, 2003

20:21 -

NOITE
(27/09/2003)

Era como se a cadeira no outro lado da mesa estivesse vazia. A pessoa estava lá, na frente dele, mas agia como se não estivesse. Havia um tempo, pensava ele, em que tudo era dividido entre os dois. Agora, haviam duas garrafas de vinho. Dois cálices. Duas cadeiras. E não mais a pessoa parecia ir na mesma direção que ele. Se antes a compatibilidade entre os dois era tal que nenhum podia fazer algo sem que o outro fizesse exatamente o mesmo, agora a existência de um para o outro parecia estar sendo questionada. Mas se ele, por um lado, demonstrava estar frustrado com a situação, a pessoa parecia simplesmente não se importar. Ria quando ele estava irritado. Olhava para os lados quando ele exigia atenção. Parecia ainda mais alheia às suas palavras do que nos dias anteriores. Finalmente, ele se levantou bruscamente e gritou. Gritou diversas vezes a mesma frase. A pessoa não demonstrou nenhuma reação imediata. Apenas esboçou um meio sorriso, fez um gesto de despedida e desapareceu. Estático, ele não acreditou no que acabara de acontecer. Olhou para a cadeira, então realmente vazia, e piscou os olhos, na esperança da pessoa reaparecer. Até que, não suportando mais o sentimento da perda, arremessou sua cadeira contra a outra. E o vinho, o cálice, a vela e a cadeira que estavam no lado oposto da mesa se espalharam, com um estrondo, em fragmentos brilhantes, que distribuíam a luz em uma face zombeteira de um reflexo que deixara de existir.

quarta-feira, agosto 20, 2003

23:52 -

SAFRA ZERO
(20/08/2003)

Contemplando o nível desta
Não há quem resista a impulsos
De ceder a desejos avulsos
Absorvendo o que nos resta

Mesmo sabendo não haver fonte
Ou na redução certa sutileza
Não renunciamos à cara beleza
Que elimina nosso horizonte

E diante de um cálice esguio
Mesmo derramando sob descuido
Aproveitamos o pouco fluido
Brindando enfim ao copo vazio

domingo, julho 27, 2003

14:31 -

CONTRATO (REVISADO)
(27/07/2003)

A moral imploraria pela emoção
Ausente na cláusla empedernida
Mas tal exclamação foi perdida
Em meio ao vazio da interjeição

Não apela-se por perdas e danos
Ou por indenizações ignoradas
De nada vale ter ações admiradas
Diante do futuro e dos planos

A rubrica não quer ser vermelha
Rompendo o bom senso que a clama
Exigindo no centro uma chama
E em volta só mera centelha

Deixando aos civis tais espólios
Não honra-lhes dores que esquecem
Mas promessas que logo evanescem
Somente cerrando-se os olhos

00:58 -

CONTRATO
(27/07/2003)

A rubrica não quer ser vermelha
Rompendo o bom senso que a clama
Exigindo no centro uma chama
E em volta só mera centelha

Deixando aos civis tais espólios
Não honra-lhes dores que esquecem
Mas promessas que logo evanescem
Somente cerrando-se os olhos

sexta-feira, maio 30, 2003

23:49 -

ADVERSATIVA
(30/05/2003)

Foi prevista uma atração inegável
Na primazia de estar descosturado
Bem-vivendo como auto-questionável
À distância admirando o renegado

(Mas)

Glorificando no limite do crível
Sobra um resquício de subversão
Na presença em dilema retroativo
De um desejo de insatisfação

sexta-feira, janeiro 24, 2003

13:10 -

Utopia
(19/01/2003)


Nem estigmas da eternidade
São de unânime suporte
Pois há quem se conforte
Com uma simples vontade


De por única vez na vida
Partir por forma natural
Que rejeite o especial
E formalmente esquecida


Desta última existência
Onde ter e ser o nada
Manifesta mais clemência


Que a filha de Pandora
Ao abrir a caixa errada
Mas repetindo o outrora

quinta-feira, janeiro 16, 2003

23:08 -

PACIENTE 417

Áudio da Câmera de Segurança
Período: 15:47 a 16:13
Transcrição: "Não me olhe assim. Desde criança eu nunca vi você triste, então tente sorrir um pouco. O que os médicos disseram sobre mim? Não minta, eu sei o que tenho. Pare, pare, não chore, eu estou bem. Essas estatísticas e numerozinhos não signifcam nada, eu sei que vou estar voltando para casa logo, e vamos poder recomeçar de onde paramos. Estou chateado por ter que vir para cá logo depois te propor... Desculpe, eles me tiraram o anel antes da cirurgia, não sei quando vão devolver. Você gostou, não é? Tsc, pare de chorar, já falei, estou bem. Embora você fique linda chorando. Gostei da roupa, aliás. Espero que as enfermeiras não fiquem com ciúme. Isso... Você fica melhor ainda quando está rindo. Acho que você ainda está um pouco assustada com o noivado, não é? Já pensei tanto... Vamos nos formar esse ano e já temos um emprego garantido, certo? Acho que seus pais vão se acostumar com a idéia e parar de insistir que estamos fazendo isso muito cedo. Logo vamos estar morando num bairro rico, numa casa enorme... Quantos carros? Dois? Pelo menos um para nossos filhos. Hmm? É verdade, tenho essa mania de ficar pensando demais. Desculpe... Não ouvi direito o que disse agora, sua voz parece estar ficando mais baixa... Pode repetir? Pare com isso, tudo o que você diz tem importância. Sério, tente ser um pouco menos passiva. Quando eu sair daqui vamos ter que conversar um pouco sobre essa sua atitude. .. Não, não, haha, eu gosto de você assim, não me leve tão a sério. Sempre se importando com o que os outros dizem, não é? Hmm? Você ainda está aí? Onde... Acho que já está na hora do hospital diminuir as luzes... Já é noite... É uma das regras, não é? Ah, sim... Estou sentindo sua mão, estou mais tranqüilo, obrigado. O que eu estava dizendo? Certo, certo, pode esperar que logo eu vou pular dessa cama e mostrar o quanto eu não me importo com o que você diz ser seus defeitos. Cama... Sono... Estranho, acho que a dose de analgésicos hoje foi maior... Mas pelo jeito funcionou, pela primeira vez a dor está diminuindo... Não quer ir pra casa? Sinto que preciso descansar um pouco agora... Quem sabe amanhã eu não receba alta? Por enquanto... Por enquanto eu só preciso de uma noite de sono... Dormir um pouco... Dormir... D..."


Informações Gerais
Nome: Desconhecido
Seguro: Nenhum
Condição: Quarentena total. Não foram permitidas visitas ou acompanhantes desde a chegada do paciente até seu falecimento.

segunda-feira, dezembro 02, 2002

11:08 -

PRICELESS
(02/12/2002)

Tendo a existência um objetivo
Desconsideram-se padrões morais
A fim de evitar a sina de iguais
Não estando em si próprio cativo


Mas se pecado é o que me atormenta
Restam apenas meus egos feridos
Trazendo suave aquém dos sentidos
Doce martírio que a mim representa


Resumo então o saber e a ânsia
Compactados na básica síntese
Da passividade e ignorância


E longe do óbvio torno-me crente
Pois sem a lógica resta-me antítese
Trivializada dentro da mente

domingo, dezembro 01, 2002

23:40 -

FIDELIDADE
(01/12/2002)

Calculou que a margem de erro era de aproximadamente seis minutos. Foi a primeira vez na vida, e provavelmente seria a única, em que encontrara uma aplicação prática para o que aprendeu nas aulas de estatística da faculdade. Sabia, porém, que estimativas nem sempre se aplicam à realidade de forma adequada, e por isso colocava-se em posição exatamente oito minutos antes da média.
Jamais se esquecia de apagar a luz; era o que faria se realmente estivesse utilizando o computador. As cortinas eram mantidas semi-abertas, com um razoável desleixo. Todo o restante do quarto era posicionado da mesma forma, meticulosamente casual. Não poderia haver, para quem olhasse de fora ou para quem entrasse no recinto, motivo algum para acreditar que algo era feito à parte da rotina. E, de fato, a partir do momento em que restavam aqueles exatos oito minutos, ninguém poderia possuir tal desconfiança apenas através da visão.
Na sua frente, o monitor brilhava com as cores de um jogo eletrônico, mas completamente fora de seu campo de visão. Este era inteiramente tomado, à exceção das cortinas quando havia muito vento, por uma das janelas do prédio vizinho. Mais especificamente, como jamais se permitia esquecer, a terceira da esquerda para a direita, no quinto andar. A luz estava apagada, fazendo a margem de erro, tão simples no papel, tornar-se horas de angústia.
Mas, como sempre, não demorava para o quarto brilhar, rosa, e um vulto surgir. O dela. Aos poucos, sem a necessidade de lentes ou câmeras, cada dobra das roupas, cada sinal do rosto, cada reflexo dos cabelos tornava-se claro e delineado. Ela usava calças pretas e camiseta rosa. As cores eram esperadas, provavelmente as favoritas, mas era mais comum contemplá-la de minissaia e regata. Não conseguiu disfarçar uma certa decepção, mas a perdoou.
Como uma gravação em câmera lenta, acompanhava passo a passo enquanto a menina se despia. Primeiro a calça, depois a camiseta. Ela passava alguns segundos apenas de roupa íntima, como se quisesse provocá-lo, antes de finalmente libertar-se. E o breve momento em que caminhasse na direção do banheiro, exibindo-se completamente nua na janela, tornaria-se mais uma memória a ser registrada, como as das noites anteriores.
Mas algo diferente aconteceu naquela vez. Talvez fossem as luzes da rua, talvez o monitor não estivesse com o brilho adequado. Ela o viu. Ela o encarou. O olhar era de medo, ou talvez desprezo. Distingüir sentimentos daquela distância não era tão fácil como descobrir a cor dos olhos. Mais intrigante ainda foi tentar saber qual dos dois fechou as cortinas mais rápido. Ou qual dos dois teve o impulso primeiro.
Suava frio. O que aconteceria? Seu esquema, tão perfeito na aparência, tinha falhas que só percebia naquele momento tão caótico. Deveria estar no terraço, pensou. Havia revelado a ela onde morava. Qual era seu quarto. O que fazia. Os pais dela poderiam investigá-lo. Estava provavelmente tão ou mais exposto quanto ela. Fechou os olhos, tentou acalmar-se, raciocinou. Não havia como ela saber que ele olhava diretamente para o apartamento dela. Ficou mais calmo. Se alguém perguntasse, ele negaria tudo e demonstraria indignação.
Nas noites seguintes, percebeu que ela não havia notificado ninguém de sua atitude. Havia feito algo muito pior. As cortinas não mais se abriam. Durante todo o intervalo, permaneciam fechadas. O brilho rosa tornara-se turvo. O vulto não mais ficava nítido. O relacionamento fora cortado. Provavelmente para sempre.
Perdera uma dependência. Não haviam outras. Mecanicamente, continuava a manter sua rotina de preparar-se para vê-la. Mas ela não voltava. Tentou então, como única forma de evitar a completa depressão, resgatar todas as memórias que havia registrado. A cada momento que fechava os olhos, ela estava lá. Com seus cabelos longos, olhos claros e corpo perfeito, esbelto. Seus lábios, seus seios, sua pele provavelmente tão macia quanto lisa. Haviam tantas memórias, tão detalhadas, que chegou a sentir um certo alívio. Mas ainda precisava contemplá-la. Jamais viveria somente de memórias, quando a fonte de sua existência estava tão próxima. Desde a fatídica data, jamais passara-se uma noite em que não derramasse pelo menos uma lágrima.
Então, ele finalmente a viu. Haviam se passado uma semana e três dias até as cortinas se abrirem novamente. Estava nervoso, tinha certo receio, mas era necessário ver. Ela estava usando uma roupa inédita. Um vestido longo transparente e, por baixo, uma lingerie vermelha. Como um anjo, ela sorria. Olhando diretamente para os olhos dele. O sorriso não era imaginário, como sua voz, mas claro, nítido, palpável. E o vestido, tão pouco adequado a uma menina de doze anos, e ao mesmo tempo tão lindo e deslumbrante, era a forma dela pedir desculpas por tê-lo feito esperar tanto tempo.
Ele tinha certeza que em todos os seus dezenove anos de vida, nunca havia recebido tamanha gentileza. Nem mesmo das namoradas, nem mesmo dos pais. E lamentava não poder comunicar-se com ela. Sentia por ela não poder vê-lo da mesma forma que ele a via. Queria de alguma forma expressar o que sentia. Desejava somente que ela soubesse que, durante todo o período em que desaparecera, ele jamais, em momento algum, havia cogitado procurar outra janela.

segunda-feira, novembro 25, 2002

19:57 -

ADMINISTRAÇÃO
(25/11/2002)

Havia quem se sentasse ao meu lado
Junto a memórias e novos prazeres
Mas se restavam dor ou deveres
Nunca sozinho sentia-se o fardo


E via mulheres sem pensamentos
Como alianças e vida futura
Que se entregavam em sala escura
Sem um nome ou sentimentos


Servia como lastro ao ortodoxo
De encruzilhadas sem virtude
Constituindo o meu paradoxo


A via que resta jamais seguiria
Mantendo-me em rota de solitude
Ainda que aquém do que desejaria

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